Gisele Milk investigou pedidos de aposentadoria e encontrou uma comunidade que pode ter adoecido por contaminação química
Fernanda Aranda, iG São Paulo
| 02/02/2012 08:00
Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena
Gisele Milk: investigação deu a ela o apelido de "Erin Brockovich brasileira"
Pilhas de processos amontoados recepcionaram Gisele Milk no
primeiro dia de trabalho em um escritório de advocacia na cidade de
Triunfo, a 30 quilômetros da capital Porto Alegre (RS). Não eram só as
boas-vindas de um primeiro emprego como advogada recém-formada.
Era o começo do processo de montar um quebra-cabeças para desvendar
os motivos que levaram uma comunidade da zona rural da cidade, formada
por 200 famílias, a apresentar taxas de mortalidade por câncer 50% maiores do que a população do restante do município gaúcho.
Gisele, então com 24 anos, encontrou catalogados naqueles papéis
amarelados processos trabalhistas antigos, individuais e não
relacionados, que pediam aposentadorias por invalidez pelos mais
variados problemas de saúde.
“Fiquei intrigada: a maioria dos clientes vivia próxima entre si,
quase no mesmo quarteirão e um não sabia da reivindicação do outro”.
As doenças que existem praticamente lado a lado – câncer, doenças
hepáticas, mutações congênitas – vitimaram moradores da vila operária do
bairro Barreto, localizado na zona rural de Triunfo. Os vizinhos
residem no entorno de um terreno de 16 hectares, onde funcionou, entre
1960 e 2005, uma fábrica de postes de energia elétrica, de propriedade
da Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul (CEEE).
Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena
Entrada do terreno onde funcionou a fábrica de postes elétricos
Embaixo da terra hoje desabitada pela indústria restaram – segundo
afirmam laudos feitos em 2011 a pedido da Promotoria do Meio Ambiente do
Ministério Público (MP) de Triunfo – tonéis lotados de substâncias
químicas, com potencial destrutivo à saúde, utilizados por décadas para
preservar as madeiras no processo fabril.
Arsênio, cromo VI, polifepranol, dioxina são substâncias cancerígenas
e alteradoras do DNA humano e a contaminação por elas ainda é ativa no
local, de acordo com o MP. Até hoje, a comunidade vive em casinhas de
alvenaria convivendo com o cheiro forte de metal após a chuva, como
atestou o iG em visita ao local.
Os indícios de adoecimento da população por esta exposição química agora são investigados pelo governo gaúcho.
Quatro anos antes, no entanto, Gisele Milk suspeitou ser este o elo
entre os clientes do escritório onde conseguiu o primeiro emprego.
“Comecei um trabalho de formiguinha e hoje já tenho cerca de 100 ações em andamento.”
Ainda sem vitórias, a advogada brasileira ganhou de alguns colegas o
apelido de Erin Brockovich, em referência à mulher que teve sua história
conhecida no mundo quando, em 1996, a atriz Julia Roberts a interpretou
no cinema.
Ficção e vida real
Os nomes de tóxicos que a própria CEEE admite ter usado no terreno –
informação contida em cartilhas distribuídas à população local - também
fizeram parte dos processos judiciais conduzidos pela verdadeira Erin
Brockovich nos Estados Unidos.
Após anos reunindo provas como auxiliar de um escritório de
advocacia, conseguiu uma indenização de 333 milhões de dólares para os
moradores da cidade Hinkley, na Califórnia. Ela alegou que a população
adoeceu por beber a água contaminada pelos químicos, disseminados no
lençol freático local por uma fábrica. A história inspirou Hollywood e o
filme foi campeão de bilheteria na época. Mas a “Erin” de Triunfo – que
assim como a da vida real é loira, tem olhos claros e adora um salto
alto – almeja outras semelhanças com a norte-americana.
“Trabalho para que as pessoas sejam indenizadas. Já perdi clientes
para os mais variados cânceres. Represento duas mulheres que tiveram
bebês que nasceram sem cérebro, sendo que a anencefalia é considerada
uma condição rara pela medicina”, conta a advogada brasileira.
A CEEE nega a relação da contaminação com os danos à saúde da
comunidade, mas afirma já ter começado o processo de retirada dos
químicos do solo. Veja aqui o que diz a empresa.
As investigações do MP indicam que há contaminação ativa em sete
pontos do distrito e que “os riscos ao ambiente e à saúde da população
são concretos e iminentes”, nas palavras do promotor ambiental que cuida
do caso, Luciano Gallicchio.
Horta e rio
Durante a visita ao local, há 20 dias, a reportagem do iG
encontrou na vila operária um misto de moradores desavisados e
temerosos em relação aos materiais tóxicos existentes no local. Em parte
das casas, hortaliças porcos e galinhas que servem de refeição para as
famílias eram cultivados na divisa com o terreno condenado pela
Promotoria Ambiental do Ministério Público.
Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena
Uma das hortas cultivadas na divisa do terreno condenado pelo MInistério Público de Triunfo
Muitos habitantes nadavam e pescavam no rio Taquari,
localizado nos fundos da antiga fábrica, que também tem as águas
investigadas pela vigilância ambiental por conta de “indícios de
contaminação do lençol freático”, diz o processo de origem
139/1.08.0000360-3 do Ministério Público.
“Tomara que eu tenha adoecido por azar e não por causa da vila. Minha
história toda é aqui”, suspirava Jonçara Nunes dos Santos, 53 anos, que
mora no local desde 1972 e é uma das clientes de Gisele Milk. Há 15
anos, ela adoeceu do fígado. Também perdeu o filho de 22 anos por
distrofia muscular congênita. O marido, que foi funcionário da fábrica
de postes, teve feridas e descamação na pele. A irmã, que vive duas
casas adiante, teve câncer nas duas mamas e o sogro – outro ex-empregado
da fábrica – teve depressão profunda e cometeu suicídio.
O caso de Jonçara reúne a diversidade de doenças, físicas e mentais,
que Gisele Milk descreve em seus pedidos de indenização contra a CEEE.
Ainda não há, no entanto, comprovação científica de que a causa das
anomalias desta e de outras famílias tenha sido exposição aos materiais
usados nos postes.
A toxicologista do Laboratório de Poluição Ambiental da Universidade
de São Paulo (USP), Gisela Umbuzeiro, atesta que todas as substâncias
são muito perigosas, mas o grau de intoxicação e os danos provocados por
elas depende do tempo e da forma de exposição.
Comprovar a relação de causa e efeito com as substâncias tóxicas
“exige estudos e monitoramentos de anos”, diz a especialista. Este
monitoramento já começou, em parceria com a Secretaria de Saúde do
Estado e o Ministério da Saúde, respondeu por meio da assessoria de
imprensa a Fundação de Proteção ao Meio Ambiente (FEPAM) do RS.
Alguns dados disponíveis em exames pontuais, apesar de inconclusivos,
são preocupantes. Um deles – feito pela secretaria de saúde, finalizado
em 2009 e que motivou o acompanhamento da Fepam – mostra que a taxa de
mortalidade por câncer na vila operária de Barreto supera em 50% a taxa
encontrada em Triunfo como um todo (nessa localidade são 18 casos de
câncer por 100 mil habitantes contra 12 por 100 mil no restante do
município).
“São indícios que apontam para um excesso de mortes, mas ainda não
podemos afirmar a causa”, diz Virgínia Dapper, uma da médicas escaladas
pela Fepam para monitorar as famílias de Barreto.
“Por ora, a incidência geral de outras doenças (hipertensão, diabetes,
anencefalia) em Barreto não difere da de outros distritos, mas é fato
que é uma área extremamente contaminada e precisamos de mais testes.”
O início
As suspeitas de que os clientes do escritório poderiam ter sido
vítimas do coquetel de materiais tóxicos foram levantadas em artigos da
internet que Gisele acessou nos primeiros 15 dias de trabalho (e de
insônia). O estudo sobre a alta mortalidade por câncer, conta a
advogada, ela teve acesso no dia em que conseguiu entrar em uma reunião
da Vigilância Sanitária de Triunfo.
“Comecei a frequentar estes grupos, conversar com médicos, pedir
ajuda na internet, fazer cursos de saúde ocupacional. Dormia no máximo 3
horas por noite naqueles primeiros meses.”
Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena
Jonçara, com a família: ela espera ter adoecido por causa do "azar" e não da contaminação
A então recém-formada não se lembra de ter o sono tão
restrito. Nem mesmo na época em que cursava Direito na cidade de São
Leopoldo, fazia estágio em Triunfo e morava em Porto Alegre, trajetos
que somavam 4 horas dentro do ônibus – sempre na companhia da música de
Nando Reis nos fones de ouvido. Já nesta época, Gisele se acostumou a
acordar às 4h50 e só dormir a 1h, rotina repetida agora, no primeiro
emprego com diploma.
Na trajetória de Gisele Milk, o início da pesquisa sobre a possível
contaminação na vila operária coincidiu com o começo de um novo
relacionamento amoroso, que também acabou na rota de suas investigações.
“Conheci o Glauco com 15 anos (e ele 18), engatamos um namoro, mas
não deu certo”, recorda. “Reencontrei com ele trabalhando no mesmo
escritório de Triunfo, um pouco mais gordinho, e também advogado.
Embalados pela nossa profissão, voltamos a namorar.”
Glauco Costa dos Reis nasceu, cresceu e escolheu ser advogado
justamente em Barreto, distrito que agora era motivo da insônia de
Gisele e quase não deixava espaço para o cinema de sábado.
“Meu pai trabalhou na fábrica de postes, meus amigos todos também
eram filhos de funcionários. Nunca desconfiamos e nem fomos informados
de que viver ali traria algum dano à saúde. Quando a Gisele passou a
discutir as suspeitas, a sensação foi de pavor” conta Reis.
Seis meses depois daquele primeiro dia de trabalho – com o namoro com
Glauco já seguindo o caminho de um casamento – Dona Márcia, a mãe do
advogado, morreu de câncer no estômago.
“A minha dor pessoal, por causa daquele tumor
maligno que matou a minha sogra (Márcia, garante a família, não tinha
antecedentes de câncer, não fumava e não bebia) aumentou minha vontade
de fazer justiça”, diz Gisele.
“Ajuizei a minha primeira ação contra a CEEE em 2009. O caso da minha
sogra está entre os 100 processos que hoje, após intensa investigação,
estão em andamento”, diz.
Peixe pequeno
Gisele ainda não ganhou nenhuma ação. Seis delas foram arquivadas em
primeira instância, e todas as outras ainda estão em andamento sem
definição jurídica ou sanitária. Quase diariamente, conta, ela é
procurada por algum morador de Barreto que perdeu alguém da família por
câncer, doença incapacitante, aborto, anencefalia ou falência de algum
órgão. A pilha de processos que a recepcionou no início da jornada
quadruplicou de tamanho na mesa de trabalho.
Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena
Gisele Milk visita à comunidade, conversa com Lurdelita e o marido: sem café ou chimarrão
“Ficou mais triste trabalhar, pois hoje conheço os rostos que eram só números naqueles papéis”, diz.
Três vezes por semana, a advogada vai a Barreto conversar com os
moradores da vila sobre os processos jurídicos. Na mesma rua, bate na
porta de Vera Lúcia de Almeida, 57 anos, para saber se o câncer de mama,
diagnosticado há dois anos, está de fato controlado. Dez metros
adiante, verifica se Lurdelita Nunes dos Santos, 47, está fazendo o
tratamento contra um tumor maligno que resultou na retirada dos dois
seios. Dois quarteirões dali, indaga se Marlisa Francisco, 45 anos, está
menos triste com a perda do marido por um câncer no intestino no início de 2011, dois anos depois da filha do casal ter morrido de leucemia (câncer no sangue) aos 17.
“Sou considerada peixe pequeno por alguns advogados. Outros colegas
me acusam de querer tirar proveito dessa gente, só para ganhar algum
dinheiro”, diz.
“Sem hipocrisia, obviamente, serei beneficiada do ponto de vista
financeiro, caso consiga as indenizações. Mas e a saúde dessa gente?”
Os dias de visita a Barreto terminam sem café ou chimarrão como é
costume entre os gaúchos. Como Gisele sabe da investigação sobre a
contaminação da água, ela fica sem graça, mas acha prudente negar as
bebidas feitas com a água dos poços, localizados perto do terreno
contaminado.